sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Andar(res)

 Levanto-me lentamente. Equilibro sobre as pernas o peso de anos afim. Ajusto o peso do corpo, pesado não pela sua massa, mas pela força gravítica dos pensamentos que perduram na minha mente. Ensaio os paços até à janela, e depois de lá recuo e avanço em pensamentos, na exata sincronização com que aperto as sapatilhas. 

Agarro uma ponta do atacador. Sinto o cheiro a mar...

...Agarro e faço um laço. Sinto o teu abraço. 

Faço o mesmo com o outro. A minha cara encosta na tua. 

Junto ponta com ponta. Começo a sentir-me tonta. 

Cruzo os atacadores, vem tudo num arrepio. Aquele dia... e depois o vazio. 

Fico com frio. Volto ainda mais pesada para o sofá. Surripei uma manta algures entre o corredor e a porta da sala. Deixo-os em todo lado, para quando frio chega me aconchegar e afastar o peso da solidão. É esse o pior de todos os pesos que os meus pés, enrugados, com joanetes, esporões e calos acarretam. Agarro outra manta para me tapar. Ouço a rua em eco na sala, e o pensamento em eco na casa, e o meu coração em eco na boca. 

Decido deitar-me. Desaperto as sapatilhas.   

Agarro uma ponta do atacador. Sinto o cheiro a mar...

sábado, 3 de outubro de 2020

 Nem sempre sei quem sou e o que quero. Perco-me na realidade que cruza os vários planos horários que variam ao longo do dia. Nem em todas sei quem sou. Nem o que quero, e ainda com menos frequência, o que realmente mereço. 

Faço divagações entre o passado e o futuro, tentando orientando o presente  para soar com o local de onde venho, direcionado para onde quero ir. Nem sempre corre bem, porque falta muita vez a noção do que quero, e do que sou. É mais ou menos o afinar de uns instrumento, mas só afinando uma corda de cada vez que se toca. Uma nota afinada não torna uma música equilibrada. 

E assim sigo, sem saber se sou passado, presente ou futuro. Sem saber onde piso e onde estou. Perdida, entre o fim e o princípio de coisa nenhuma. 

Estou num lugar inóspito. A temperatura que se sente faz-nos entrar em transe: não está frio nem calor. Como se não sentíssemos nada. Advertem-nos num cartaz para falarmos baixinho em nome da "humanização". Mas onde há gente, onde há alegria, tem de haver barulho. Sorrio com a ironia da mensagem, e sento-me invisível  à espera de quem não me espera.
Cruzam-se estórias nos rostos que passam. Quem são? De onde vêm? Onde começa a verdade e acaba a ilusão que os anos provocam nas memórias atraiçoadas pelo tempo? 

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Gosto tanto de escrever, que ás vezes me esqueço. Perco-me nos meus pensamentos em diálogos sinceros comigo e com outros - ou outros eu - e esqueço-me que deveria escrever mais. Na verdade, escrevo muito. Escrevo tanto que me perco entre os teclados alfanuméricos e os outros. Os dedos já conhecem o caminho das teclas e afundam nelas quase automaticamente. Mas não escrevo já diretamente do coração. Ou do cérebro, sem encher o que escrevo com pensamento lógico.Acho que é mais assim, na verdade. 
Passa o tempo, passa os dias, e o que falta? O que precisas? O que realmente queres? 

Escrever? Então escreve.  

quarta-feira, 1 de abril de 2020

E depois com o sol aparece uma luz. É difusa, e pode desaparecer a qualquer momento. É algo novo, que dá calma e quietude, e desinquieta ao mesmo tempo. É desconcertante, mas transmite calma e fecha capítulos. Cresce a inquietude e a insegurança, mas mantém-se a luz. crescemos. Conhecemo-nos.  Pode dar num fim, mas já encerrou outros capítulos, e só por isso, já valeu a pena.
A luz, que entre. Que fique para durar, mesmo nos dias de tempestade.

terça-feira, 31 de março de 2020

Abalou o Mundo uma sombra. É estranho, mesmo com sol, ela paira... temos um som de fundo diferente do normal. Acredito que ouvimos mais o coração, as vísceras no seu sentido mais lato. Crescemos a aclamar liberdade, e agora ela acabou embora continue lá. É estranho o tempo. Não há inicio nem fim. Colocamos tudo em causa, até a nossa sanidade. Damos voltas à volta de tudo, e não encontramos nada, e levantamos e caímos e cerramos os punhos, e gritamos sem ninguém ouvir. Falta-nos um poiso para a alma, um local para arrumar as ideias, e para as ter, e para as concretizar. Cantamos sem voz, corremos entre paredes, e esbarramos na porta, uma, outra, e outra vez. Precisamos de chão, de uma mão, de uma voz, de um som que não seja o nosso próprio andar deambulante pelos cantos. Fazemos perguntas que nunca esperamos que surgissem na nossa cabeça, dançamos sem música, sem fim, sem público, sem nada. Arregaçamos as mangas, calçamos os sapatos, viajamos sem sair do lugar, cantamos sem voz - já tinha escrito isto? - e fechamos os olhos. Dormimos mais vazios que nunca, cheios de medos e receios, cansados desta (in)liberdade que o mundo nos ofereceu para parar.
Acordamos cansados com os pesadelos do mundo, contamos números entre preces a sabemos lá quem para que nunca esse número venha a ter um nome, uma cara, uma memória associada. Andamos e deambulamos, a acreditar feéricamente que isto vai acabar, que o sol vai ficar mais brilhante, o ar mais leve, os nossos mais nossos ainda, e que tudo vai ficar igual. Mas não vai. Porque talvez pela primeira vez, vamos conhecer que vive em nós. E respirar fundo, ficar com o que realmente importa, ser feliz no jardim, na janela ou à porta. 

segunda-feira, 9 de março de 2020

Chovia e fazia sol. Não sabia se ficar em casa significava evitar uma ou outro. Deambulava pela casa e pela teia de pensamentos que corriam. Nunca certos, assolavam a existência de uma forma ritmada, mas sem padrão. Cruzava o olhar com a televisão, com os livros, com a tentação de sair e com a necessidade de ficar. Agarrava o telemóvel. Não sabia o que esperava, mas ansiava alguma coisa. Acreditava no tempo, no amor e na existência. Levantei-me. Fui a janela. Ouvi o barulho da vida, citei os poetas mais conhecidos, rezei de uma forma inconhecida por Deus. O sol decidiu por mim ficar e eu fiquei com ele. Aqueci a cara, as mãos, o peito.
Fechei os olhos e escolhi estar.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Tropecei de novo na mesma pessoa. Não vou mais cair, mas não sei se quero balançar sequer nestas inconstâncias. Tenho um vislumbre de algo diferente, mas as dúvidas são mais que as certezas. E balanço na inconstância da vida. Perco-me pelos pensamentos de mãos dadas com os "Se" da vida, e sem mapa nem rumo continuo. Sei, embora nem sempre me lembre, que a culpa não é minha, que não tenho de ficar no limbo, que posso avançar. Mas esqueço-me disso muitas vezes, perdida (já escrevi perdida?) na vida e no caminho. Tropeço nas minhas dúvidas, levanto-me sob as incertezas, ergo a cabeça e fecho os olhos, perdida na minha própria estória.
Cerro os olhos. Descruzo os braços. Respiro fundo. Levanto-me. Mas o que faço?