quinta-feira, 26 de maio de 2011

Real e imaginário

O conta quilómetros parcial marcava 777.7. "Coincidência?" perguntou. Não, já sei que não é, porque já demasiadas vezes se tornou  regular. Formular desculpas e argumentos de tangentes fingidas de círculos trignométricos cujo raio é impossível ser um. Cansa e desgasta ainda mais o órgão que parcialmente destuiste com balas que se de outra altura se tratasse, seriam feitas de papel fino e cortante, escritas com pena de galinha, que ganso não há, e mergulhadas em tinta da china, num Portugal genúino, com o cheiro de dois pólos antagónicos da realidade quotidiana.
E hoje, sem saber qual o raio de distância  - embora fosse claramente superior a um - vestígios da tua presença atravessaram à minha frente. Acelerou, juntamente com o carro, o ainda lesado órgão, que ansiando pela tua presença fez apurar os meus sentidos e descobrir quem era afinal. Mas fugiste, metaforicamente ou não. Tal como todas as vezes. E o circulo voltou a esquecer-se de qual era o seu raio.

sábado, 21 de maio de 2011

Ricardo Araújo Pereira: a Ironia da Notícia

A morte é a morte e acabou-se; o casamento é mais cruel: é como uma doença. Daí a expressão "contrair matrimónio". Estar casado é uma condição que se contrai, como um vírus


É uma regra conhecida por todos os leitores e cinéfilos: as comédias acabam em casamento, as tragédias acabam em morte. O que não tem cessado de surpreender os académicos é a circunstância de as comédias terem, tradicionalmente, o desfecho mais trágico: a morte, muitas vezes (se não todas), acaba com o sofrimento; o casamento dá-lhe início. A morte é a morte e acabou-se; o casamento é mais cruel: é como uma doença. Daí a expressão "contrair matrimónio". Estar casado é uma condição que se contrai, como um vírus. O facto de o Código Penal de alguns países prever a condenação à pena de morte mas não a condenação ao casamento tem intrigado as pessoas casadas de vários tempos e lugares. Creio que o celibato dos padres tem como objetivo fazer com que a instituição do casamento perdure: se os sacerdotes soubessem o que o casamento é, sendo homens de Deus não teriam coragem de infligir o mesmo castigo a outro ser humano.
Uma pessoa não precisa de estar no altar para sofrer com um casamento. Assistir a um casamento consegue ser quase tão penoso como tomar parte nele. Há quem sonhe com cobras, com espaços fechados ou com ladrões. O meu pesadelo recorrente é um casal amigo a perguntar-me: "Queres ver o vídeo do nosso casamento?" Segue-se uma sensação de abismo e acordo aos gritos e a suar.
Ao que parece, contudo, há uma grossíssima fatia da humanidade que aprecia submeter-se à tortura de testemunhar casamentos de pessoas que nem sequer conhece. O que William e Kate fizeram na passada sexta-feira foi dizer ao mundo: "Querem ver o vídeo do nosso casamento?" E o mundo, em lugar de fugir aos gritos e a suar, pôs a televisão na CNN. E na BBC. E na FOX. E na RTP. E na SIC. E na TVI. E na TVE. E na RAI. E em todos os canais que estivessem a emitir na altura. Um milhão de pessoas assistiram à cerimónia em Londres. Eram 12 populares curiosos e 999 988 jornalistas.
Apesar do incompreensível entusiasmo de milhões de pessoas pelo matrimónio de dois cidadãos ingleses que não conhecem, esta semana acabou por provar uma vez mais que, quando comparada com um casamento, a morte é mais alegre. O falecimento de Bin Laden provocou festejos mais ruidosos, mais efusivos e mais vastos do que o casamento real. Vários líderes mundiais disseram que o mundo respira melhor depois da morte de Bin Laden. Mas o príncipe William já deve ter começado a sentir falta de ar.

Ricardo Araújo Pereira, Um casamento e Um funeral, in Visão
O tempo difundiu-se com o espaço. Não me assola na memoria se foi ontem, hoje ou à algumas horas. O cheiro da comida, a chamada que recebi, a conversa que houve... N altura, não me ocorreu o quão importante foi para mim. Agora, penso nisso e choro por causa da generosidade e da amabilidade que me fizeste.
Hoje, o espaço ergue-se na minha mente. E recordo-me do sorriso que me roubaste

domingo, 15 de maio de 2011

Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar


Sophia de Mello Breyener
"Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei."

"Morreste-me" de José Luís Peixoto