sexta-feira, 15 de março de 2019

Você vira Tu

Estava calor. Escondias uma coisa que tinha visto a meteres debaixo da torneira que jorrava água morna aquela hora. Primeiro deixaste a água correr, depois ensopaste uma coisa que não percebe o que seria. Saímos de casa, colocaste a chave debaixo da porta - que mais tarde tirarias com um ramalho - e caminhamos para a horta. E voltei a perguntar: o que é isso? É pão... com quê?
E mandaste-me fechar os olhos. Veio-me à boca um sabor húmido, desprovido de sal, mas com a textura do sal, que fazia crescer água na boca.
Sei que não fizeste de propósito, mas contaste primeiro que quando eras da minha idade, o pão fazia-se uma vez por semana, e que nos últimos dias já estava duro. Então a avó velhinha, molhava-o em água, e metia-lhe açúcar. E o que de duro simbolizava a vida, ficava doce e era motivo de festa. Descíamos o carreiro, e eu pequena, tu grande perante a minha altura, senti-me orgulhosa de ter provado o tempo, o espaço, e a infância, carregada de marcas que viveste.
Não sabia isto na altura, mas sei-o agora. Dizem que somos parecidas. Eu sei que aquele pão com açúcar ensopado na água ainda meio morna foi o melhor deleite do meu verão, e me levou para um antigamente que não sabia ter sido à tanto tempo. Na minha pequenez, nem sabia ainda o que era a velhice, nem o tempo.
Importava o agora.
"Vó, das-me mais?"
"Só se não disseres à tua mãe".
E noutra trinca voltei a tua infância, de pedras de sal doces.